Texto muito bom de Ana lúcia Souza de Freitas.
Este texto faz um relato reflexivo sobre a experiência vivenciada por um grupo de professores com o processo de construção e desenvolvimento do complexo Temático em uma escola municipal de Porto Alegre RS.
PLANEJAMENTO E ORGANIZAÇÃO DO ENSINO POR
COMPLEXO TEMÁTICO: TESTEMUNHOS DE UMA
PEDAGOGIA DA CONSCIENTIZAÇÃO NA VIVÊNCIA
DA
ESCOLA CIDADÃ.
Ana Lúcia Souza de
Freitas[1]
Introdução
O texto reflete acerca da
potencialidade transformadora do processo de constituição da Escola Cidadã na
Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre - Projeto Constituinte Escolar
-destacando a contribuição de Paulo Freire como um dos pilares para a
problematização da prática docente, bem como para sua reinvenção, na
perspectiva da educação popular. A Escola Cidadã, ao estruturar-se a partir da
organização curricular por ciclos de formação e da organização do ensino por
complexo temático, enquanto aspectos complementares, é expressão do compromisso
docente com uma escola pública de qualidade social[2].
Considerando, tal como Freire (1991), que mudar é difícil, mas é possível e
urgente (p.8), o processo de reestruturação curricular fundou-se na indignação
frente à realidade excludente e na esperança de sua transformação, a ser
potencializada no trabalho escolar socialmente comprometido. A vivência desse
processo se faz relevante porque a participação está mobilizando saberes e
fazeres que questionam a dimensão exclusivamente técnica da atividade docente,
como é possível perceber no depoimento de uma das coordenadoras:
(...) a
construção deste processo a partir da Constituinte Escolar me marcou muito na
trajetória profissional, todo esse processo de construção dos princípios da
Escola Cidadã, marcou também porque quando a gente lê sobre isso, sobre como
foi o processo da Constituinte Escolar, como se deu, o que aconteceu, eu me
vejo como coordenadora do processo, eu acho legal porque eu fiz parte, isso me
traz muita satisfação e eu acredito que todas as pessoas que participam desse
processo ao lerem se sentem mais sujeitos ainda dessa construção.
Trata-se de um movimento cuja
complexidade vem desenvolvendo as dimensões política, epistemológica e estética
da prática docente, na perspectiva da construção do inédito-viável[3],
ou seja, do enfrentamento cotidiano para a concretização de sonhos possíveis.
A cidade de Porto Alegre, desde
1989, com a experiência educacional vivida a partir da Administração Popular,
testemunha a possibilidade de reinvenção da escola na perspectiva de sua gestão
democrática. Contudo, a gestão democrática da escola não tem um fim em si
mesma; é parte integrante do processo de democratização da cidade. Através do
Orçamento Participativo, a gestão da cidade implementa práticas de participação
direta da população no processo de planejamento, definição e fiscalização dos
investimentos públicos municipais e constitui-se como referência para a
aprendizagem da vivência democrática, desafiando a complementaridade das
relações entre escola e comunidade no processo de definição dos rumos da
cidade. Através do OP, desenvolve-se uma cultura de que a participação da
comunidade na escola, em suas instâncias de discussão e decisão, é tão
fundamental quanto a participação da escola nas instâncias de organização da
comunidade, em sua relação com a cidade. É no sentido do desenvolvimento desta
cultura de participação na relação da escola com a cidade que destaca-se o
Projeto Constituinte Escolar 213 como um caminho para a reinvenção da escola, o
qual, constituído na RME de Porto Alegre, passou a ser referência desta
possibilidade para muitos outros municípios.
Nas palavras
de Gentili (2000), a Escola Cidadã é referência nacional e internacional na
construção de um sistema escolar onde o direito ao conhecimento não é um
privilégio de poucos (p.17).
A Escola Cidadã, criada a partir
do Projeto Constituinte Escolar é, pois, um inédito viável que vem sendo
constituindo coletivamente, num exercício de ousadia, de assunção do risco e do
prazer da autoria numa perspectiva utópica que compreende a distância entre o
sonho e a realidade como um espaço de luta e criação (Freitas, 2000). A práxis
educativa libertadora desenvolvida nesse movimento, orienta-se em função de
três desafios que integram a gestão democrática do trabalho pedagógico: (1) a eliminação
de mecanismos que institucionalizam na escola a lógica social da exclusão; (2)
a criação de mecanismos institucionais de inclusão capazes de garantir a
aprendizagem para todos; (3) a formação permanente e crítica dos educadores,
fundada na reflexão da prática, como condição para a democratização das
relações e da vivência da construção de conhecimento socialmente comprometido.
Para tanto, a Escola Cidadã
propõe duas grandes rupturas que dão origem à estruturação de um projeto
político-pedagógico emancipatório. A primeira diz respeito à eliminação da
reprovação em função do compromisso com a aprendizagem para todos, ao
considerar a mútua interferência entre desenvolvimento e aprendizagem, fazendo
deste um eixo organizador do ensino como um processo contínuo, segundo os
ciclos de formação, a saber: infância, pré-adolescência e adolescência. A
segunda ruptura, em função da qual se propõe a organização do ensino por
complexo temático, é a não aceitação de práticas cristalizadas em torno de
listagens de conteúdos e seus pré-requisitos, por considerar a não linearidade
do processo de construção de conceitos em que se inscreve a aprendizagem
humana, bem como a natureza política do processo educativo. Tais proposições
sustentam a reinvenção da escola na perspectiva da educação popular e mobilizam
a reinvenção da concepção e prática docentes, fazendo do processo de formação
permanente do educador uma condição à democratização do processo de
reestruturação curricular, tal como expressa uma das entrevistadas:
Esse processo
de formação é muito importante, na verdade a proposta tira aquelas estratégias
de sobrevivência que o professor fabricou durante os anos de[4]
sua atuação, no sentido de que se o aluno me incomoda eu vou dizer que ele vai
rodar, então eu continuo com a minha autoridade. A Escola Cidadã, ao colocar
essas rupturas, retira do professor essas estratégias de sobrevivência. E só
com a formação em serviço, aquela formação continuada que a gente faz é que vai
dar segurança ao professor para poder sustentar esta insegurança causada pelo
medo: - o que vou fazer, o conteúdo não é mais o que está no livro didático.
Planejamento e organização do ensino por complexo temático: desafios à
(trans) formação permanente do educador
Planejamento a partir da realidade
tem sido um desafio às práticas progressistas que compreendem a prática
educativa como prática social. Contudo, muitos são os impedimentos quando esta
não é uma prática coletiva, mas situa-se no âmbito de propostas individuais. A
potencialidade transformadora do Complexo Temático reside, entre outros
aspectos, no fato de ser uma proposta para o coletivo da escola que assume a
perspectiva transformadora da função social de seu trabalho.
Complexo Temático é uma
denominação criada para expressar a intencionalidade do processo educativo que
toma como referência as contribuições de Pistrak (1981) acerca da organização
do ensino segundo o sistema dos complexos, bem como de Paulo Freire (1987)
acerca do tema gerador, concebendo uma forma de organização do ensino que:
propõe uma
captação da totalidade das dimensões significativas de determinados fenômenos
extraídos da realidade e da prática social (SMED, Caderno 9, p.21) e, desse
modo é importante que se diga que não se encontra nos indivíduos isolados da
realidade, tampouco na realidade separadas dos indivíduos e de sua práxis. O
Complexo Temático só pode ser entendido na relação “indivíduo-realidade
contextual” (idem ibdem).
Considerando a prática social
como fonte de conhecimento, a proposta de organização do ensino por Complexo
Temático traz implícito o desafio de assumirmos o conhecimento do contexto como
ponto de partida para a prática pedagógica. Para tanto, propõe a realização da
pesquisa sócio-antropológica, tendo em vista a organização do ensino na perspectiva
de um movimento que
caracteriza-se
por fazer-se produção coletiva, respeitando as especificidades locais e
regionais, por ser significativo para toda uma comunidade, por apontar
situações-problemas para seus atores, por propor-se gerador de ação, por ajudar
o aluno a compreender a realidade atual, por
respeitar os
sujeitos que na escola e na sociedade interagem e por ser representativo de uma
dada leitura do real (Gorodicht e Souza, 1999, p. 8182).
Nesse sentido, não é uma proposta
que se fecha em si mesma: apresenta possibilidades de flexibilização frente às
realidades de cada comunidade; proporciona acréscimos a seu fazer (Idem ibdem,
p.82). Contudo, é possível destacar alguns movimentos importantes no processo
de elaboração e vivência do Complexo Temático:
1. conhecimento do contexto através de
uma pesquisa participante realizada pelo
coletivo da
escola na comunidade;
2. leitura e problematização da
pesquisa feita pelo coletivo; seleção de falas significativas e representativas
dos anseios, interesses, concepções e cultura da sociedade;
3. definição do complexo no coletivo
dos ciclos; determinação de um fenômeno que organize as informações e ângulos
mais significativos da realidade investigada;
4. elaboração dos princípios das áreas do
conhecimento;
5. seleção coletiva de um campo
conceitual; ampliação do campo conceitual nas
áreas;
6. criação de uma disposição gráfica
representativa do complexo;
7. elaboração de planos de trabalho por
áreas do conhecimento, por ciclos, por anos-ciclos;
8. socialização dos planejamentos no
coletivo; composição de estratégias interdisciplinares; aproximação dos
planejamentos entre e intra-ciclos;
9. avaliação e replanejamento periódico
através de reuniões sistemáticas nos ciclos, nos anos-ciclos, nas áreas;
10. problematização do Complexo
Temático vivenciado, buscando apontar o foco do complexo temático seguinte.
(Idem ibdem, p.82):
Tal proposição tem o intuito de
orientar a construção dos movimentos de ir e vir entre a leitura da realidade e
a construção do planejamento coletivo, bem como de seus desdobramentos em ações
específicas, sem perder de vista o fenômeno a ser estudado. Essa
responsabilidade se amplia a partir da compreensão de que a pesquisa
sócio-antropológica como ponto de partida da organização do ensino por Complexo
Temático, ao estabelecer uma estreita relação entre o movimento social e o
aprendizado escolar, de modo ineditamente-viável, propõe e organiza a vivência
do que Souza Santos (1989) denominou de dupla ruptura epistemológica. Trata-se
de uma orientação para uma prática docente que ponha em diálogo o senso comum e
o conhecimento científico a serviço da criação de uma configuração de
conhecimentos que, sendo prática, não deixe de ser esclarecida e, sendo sábia,
não deixe de estar democraticamente distribuída (p.42).
No exercício do diálogo
permanente com a realidade, proporcionado pela vivência da organização do
ensino por Complexo Temático, a pesquisa sócio-antropológica faz-se relevante
como um desafio ao desenvolvimento da autoconsciência acerca da natureza
política e investigativa do trabalho pedagógico, representando portanto uma
possibilidade de reinvenção da prática docente, em função da própria identidade
pessoal/profissional problematizada neste processo. Essa perspectiva de
trabalho, ao problematizar o saber fazer docente na perspectiva da construção
de um conhecimento socialmente comprometido, mobilizando o educador à criação
do inédito-viável no âmbito de sua atuação pedagógica, enquanto desdobramento
de seu compromisso social mais amplo.
É neste contexto, tomando como
referência a teoria pedagógica da educação libertadora, que está sendo gestada
uma Pedagogia da Conscientização, movimento em que a função do educador está
sendo problematizada a partir da compreensão de uma nova concepção de ciência,
em que não se dicotomizam razão e emoção, visto que ensinar e aprender,
compreendidos enquanto dimensões do processo de conhecer, mobilizam a inteireza
de ser educador, como diz Paulo Freire. A Escola Cidadã está nos desafiando a
conviver com um novo paradigma, a lidar com o inusitado e a acreditar que é
possível mudar a escola e que essa mudança não se faz de fora para dentro, mas
começa por nós mesmos, como sujeitos autores e atores do permanente processo de
construção e reconstrução da Escola Cidadã. É no sentido de potencializar esse
processo de (trans)formação permanente da prática pedagógica que se situa a
importância de ampliarmos o entendimento do processo de conscientização, a
partir de Paulo Freire, tendo em vista o desenvolvimento da concepção e prática
de uma Pedagogia da Conscientização.
Pedagogia da conscientização: um
legado de Paulo Freire à formação de professores. A vivência dos avanços e
desafios do processo de reinvenção da escola, na perspectiva da constituição da
Escola Cidadã, permite tecer algumas considerações acerca da gestão democrática
como princípio educativo que produz e é produzida pela conscientização, sendo
esta uma perspectiva de globalidade a orientar as propostas de formação
comprometidas com essa transformação. A conscientização é aqui compreendida
como processo de desenvolvimento da consciência crítica, a qual, para se
configurar em prática transformada e transformadora, exige o exercício da
criticidade aliada à curiosidade e à criatividade, sendo esta uma condição
necessária à criação do inédito-viável frente às situações-limite que
cotidianamente se apresentam ao educador.
Sobretudo, há que se compreender
a conscientização como processo de transformação da consciência-mundo que situa-se
no campo das possibilidades e não da garantia de sua realização; eis porque se
faz relevante a compreensão da Pedagogia da Conscientização inscrita na obra de
Paulo Freire. Enquanto princípio metodológico, a conscientização precisa
considerar, simultaneamente, as perspectivas de totalidade e complexidade que
constituem a globalidade do processo de reinvenção da prática docente, visto
que essa transformação não ocorre magicamente nem dissociada do processo de
transformação da identidade profissional do educador. Considerando a
complexidade deste processo, destacam-se três relações de circularidade
complementares, cuja compreensão fundamenta a constituição de propostas de
formação que o potencializem.
No plano da adesão, a gestão
democrática produz e é produzida pela conscientização, compreendidas como
processos complementares, geradores de esperança e de mobilização ao
compromisso com o trabalho coletivo. No plano da ação, a identidade do educador
progressista produz e é produzida pela elevação da consciência da práxis
educativa libertadora, sendo este um desafio à vivência da curiosidade
epistemológica acerca da própria prática, em (trans)formação permanente. No
plano da autoconsciência,
diversidade das interações
sociais, em diferentes níveis de reflexão vivenciados pelo educador, produz e é
produzida pela criação do inédito-viável, sendo este um desafio à autoria de
pensamento e autonomia da ação do educador. Adesão, ação e autoconsciência são,
segundo Nóvoa (1997), os movimentos que integram o processo identitário do
professor como um lugar de lutas e de conflitos (...) de construção de maneiras
de ser e estar na profissão (p.34). Esse é um movimento que se vislumbra na
vivência do Complexo Temático, conforme a visão de um dos entrevistados.
Elas (as pessoas) vão passar por
uma crise, elas têm uma dificuldade de entender que têm outras maneiras de se
ver a realidade, outras maneiras de fazer conhecimento e que não é só aquele
conhecimento previamente estabelecido que nós aprendemos, ou que foi passado
para nós na universidade que deve ser passado na escola; existe um conhecimento
que está dado na comunidade, que deve ser respeitado e intencionado, e muitas
vezes ele questiona o próprio conhecimento positivista estabelecido.
Contudo, esse é um movimento
desejável, conforme a visão de outra entrevistada ao afirmar a necessidade de
que as pessoas se desacomodem, considerando que, para isso que a melhor forma
de se tirar o tapete, é a gente discutindo, mesmo que as pessoas pareçam
irredutíveis por algumas coisas, mas alguma coisa muda nas pessoas, o simples
fato de ter que se expor, já faz com que as pessoas comecem a andar. Nesse
sentido, cabe destacar a potencialidade transformadora de um processo que
assume a presença da contradição, compreendendo-a como desafio à qualidade
democrática da prática pedagógica, desenvolvendo a discussão como estratégia de
reflexão coletiva que desafia a qualidade da argumentação na disputa de
posicionamentos e mobiliza ao comprometimento com a função social da prática
educativa.
Segundo o Secretário Municipal de
Educação, José Clóvis de Azevedo[5],
as contradições são uma coisa normal dentro do processo social e é preciso que
se tenha esse entendimento, não para se subordinar a ele, mas para que se
desenvolvam ações propositivas no sentido de alterar a correlação de forças que
se estabelecem. Considera que:
temos muitos
avanços, mas temos também dificuldades e afirma que a partir do trabalho de
formação desenvolvido, existem escolas, grupos, pessoas, que querem mudar
mesmo, que acreditam na proposta, que estão investindo e que são os
responsáveis pelos avanços, mas também existem escolas e professores que
resistem ao projeto, que são contra por várias razões. Analisa-as a partir de
três segmentos de resistência, que se orientam por lógicas próprias, conforme
argumenta:
(...) alguns
são contra por ceticismo, por não acreditar mais em nada, nem num projeto mais
acabado, nem numa possibilidade de transformação, que já se flexionaram frente
a um cotidiano voltado para si mesmo, um trabalho voltado para si mesmo e sem
nenhuma necessidade ou crença, uma possibilidade de ação coletiva ... são
céticos. Depois temos os conservadores que por convicção não querem nenhuma
transformação, porque apostam numa sociedade tal como ela está hoje,
naturalizando a exclusão, o autoritarismo e todos os problemas sociais de uma
sociedade como a nossa. Depois tem o outro segmento que resiste ou até se
enquadra no processo de mudança mas que ão sabe lidar as dificuldades, não
sabem como fazer as mudanças e acabam sendo inibidos por isso.
É possível perceber, na prática
da gestão democrática do trabalho pedagógico, a constituição de um senso comum
libertador que assume a discussão como estratégia de reflexão coletiva e
desafia a qualidade da argumentação na disputa de posicionamentos, fazendo do
estudo uma decorrência natural da luta pela constituição de sonhos possíveis. É
o que se evidencia, explicitamente, em importantes trechos do depoimento de uma
das assessoras:
A gente
percebe também aqueles professores que tem outra concepção, que acreditam ainda
que a educação por série é melhor, que trabalhar só a sua disciplina curricular
era melhor, era mais fácil, era eficaz, estão procurando aprofundar
teoricamente para vir para as discussões com argumentos mais embasados. Estão
percebendo que vão ter que trazer argumentação teórica para debater, porque na
construção coletiva o que vem acontecendo é que o pessoal tem buscado um
referencial teórico, tem estudado muito, as escolas estão em um movimento bem legal
de estudo e aprofundamento para conseguir visualizar esse jeito novo de
conseguir fazer o trabalho da escola. E, digamos, consegue “dar o tom” quem
consegue argumentar mais.
Enfatiza também a forma como está
sendo possível construir a transformação da prática profissional do/a
professor/a a partir do desenvolvimento de uma consciência democrática, da qual
decorrem certas exigências ao trabalho pedagógico:
(...) quanto
mais um grupo se envolve profundamente num trabalho pedagógico diferenciado,
mais vai se contagiando com os resultados que vai tendo (...) e isso está sendo
um elemento motivador dos educadores mais resistentes no sentido de também se
desafiaram a fazer o novo (...) por isso, quem é resistência está perdendo o
espaço; o discurso hegemônico já não é mais o da escola tradicional, ainda que
se verifique algumas práticas educativas que ainda são tradicionais, mas cada
vez que o educador exercita o jeito novo de fazer o seu trabalho, mais
coletivo, ouvindo mais o seu aluno, levando em conta o que os pais estão
trazendo, potencializando para que o aluno também seja um pesquisador, também
seja sujeito desse processo, eles vão se encorajando a cada vez utilizarem
menos práticas pedagógicas estanques e tradicionais.
Igualmente destaca o quanto a transformação
da prática está implicando a inteireza dos sujeitos, desafiando a consolidação
de uma sensibilidade emancipatória, ao constatar que:
(...) vai
acontecendo um apaixonamento pelo processo democrático. Temos a fala de uma
professora dizendo numa reunião para nós, que quem passa por esse processo e
aprende a olhar o conflito desse outro jeito, e a dialogar em cima dos
conflitos não consegue a voltar a ter o mesmo olhar fragmentado sobre escola,
sobre alunos, sobre a comunidade, não consegue mais voltar a ser a mesma
pessoa. E eu acho que é isso, marca tão profundamente a vida de cada um , que
por um lado tu começa a perceber melhor a subjetividade de cada um, tu dialoga
não só com as palavras, mas com o jeito como a pessoa olha, tu passa a perceber melhor,
fazer tantas outras leituras do que está rolando em cada escola, em cada
comunidade.
Acho que é super rico, de fato,
quem entra neste processo de buscar viver a radicalidade democrática, não volta
mais a ser o mesmo. Eu me sinto assim desafiada nesse trabalho, aprendendo
muito neste processo de escola. É uma marca que fica.
Enfim, o diálogo com a realidade
testemunha a qualidade da gestão democrática do trabalho pedagógico
desenvolvido a partir da política educacional da Administração Popular em Porto Alegre,
trazendo importantes depoimentos acerca de um conhecimento libertador que está
problematizando a concepção e a prática docente a partir de uma proposta de
formação que, politicamente comprometida, orienta-se por um dos saberes que
Freire (1993) considerou fundamental ao enfrentamento das adversidades na luta
pela construção dos sonhos possíveis: a sabedoria com que se dê à experiência
de viver a tensão entre a paciência e a impaciência (p.61). A
co-responsabilidade da consolidação da proposta da Escola Cidadã está se
construindo a partir do trabalho coletivo que se renova na (trans)formação
permanente dos desafios assumidos em função da certeza da incompletude desse
processo, em função da qual vamos coletivamente desenvolvendo a autoconsciência
acerca de seus limites, visto que, parafraseando Paulo Freire, ninguém
conscientiza ninguém; ninguém se conscientiza sozinho; os homens e as mulheres
se conscientizam em comunhão. É o que vivenciamos a partir do Projeto
Constituinte Escolar em
Porto Alegre.
Referências Bibliográficas:
FREIRE, Ana Maria Araújo. Notas.
In: Freire, Paulo. Pedagogia da Esperança: Um reencontro com a Pedagogia do
oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do
Oprimido, 22ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
______. A Educação na Cidade. São
Paulo: Cortez, 1991.
______. Professora, sim; tia,
não.: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo, Olho D’Agua,
1993.
FREITAS, Ana Lúcia Souza de. A
conscientização como princípio metodológico da
formação de professores -
registro da reflexão sobre uma experiência ineditamente-viável na
política educacional da
Administração Popular em
Porto Alegre – dissertação de mestrado – PUCRS, julho, 1999.
________. Sonhar coletivamente:
uma atitude de formação produto-produtora do inéditoviável. In: Gorodicht,
Clarice (org.). Ler e escrever o mundo: compromisso da Escola Cidadã. Porto
Alegre: SMED/PMPA, p.11-14, 2000.
GENTILI, Pablo. A Escola Cidadã
além do desencanto. Prólogo In: Azevedo, José Clóvis de. Escola Cidadã:
desafios, diálogos e travessias. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
GORODICHT, Clarice; SOUZA, Maria
do Carmo de. Complexo Temático. In: Silva, Luiz Heron. Escola Cidadã: teoria e
prática. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
NÓVOA, António. Diz-me como
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Pesquisas em Educação e as Transformações do Conhecimento. São Paulo: Papirus,
1997 (Coleção Práxis), p.29-41.
PISTRAK. Fundamentos da escola do
trabalho. Tradução de Daniel Aarão Reis Filho.
São Paulo: Brasiliense, 1981.
SANTOS, Boaventura de Souza.
Introdução a uma Ciência Pós-Moderna. Rio de
Janeiro, Graal, 1989.
SMED. Ciclos de Formação -
Proposta Político-Pedagógica da Escola Cidadã. Caderno
Pedagógico nº9. Porto Alegre:
SMED, dez. 1996.
[1] Professora pesquisadora do Centro Universitário La Salle/Canoas/Pelotas.
[2] Sobre a estrutura curricular organizada em ciclos de
formação e a organização do ensino por complexo temático, bem como sobre o
Projeto Constituinte Escolar, ver: SMED. Ensino por Ciclos: Alternativa para o
sucesso escolar. In. Revista Paixão de Aprender nº 9. Porto Alegre: Secretaria
Municipal de Educação, dez. 1995; e/ou SMED. Ciclos de Formação - Proposta
Político-Pedagógica da Escola Cidadã. Caderno Pedagógico nº9. Porto Alegre:
Secretaria Municipal de Educação, dez. 1996; e/ou SILVA, Luiz Heron da. (org.).
Escola Cidadã: Teoria e Prática. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
[3] A esse respeito, ver: FREIRE, Ana Maria Araújo.
Notas. In: Freire, Paulo. Pedagogia da Esperança: Um Reencontro com a Pedagogia
do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 205-245.
[4] Diz
respeito ao período da Segunda e terceira gestão da AP em Porto Alegre: 1993 a 2000.
[5] José Clóvis de Azevedo foi secretário municipal de
educação no período de 1997 a
2000 e secretário adjunto no período de 1993 a 1996.
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