terça-feira, 29 de outubro de 2013

PLANEJAMENTO E ORGANIZAÇÃO DO ENSINO POR COMPLEXO TEMÁTICO.

Texto muito bom de Ana lúcia Souza de Freitas.

Este texto faz um relato reflexivo sobre a experiência vivenciada por um grupo de professores com o processo de construção e desenvolvimento do complexo Temático em uma escola municipal de Porto Alegre RS. 

PLANEJAMENTO E ORGANIZAÇÃO DO ENSINO POR
COMPLEXO TEMÁTICO: TESTEMUNHOS DE UMA
PEDAGOGIA DA CONSCIENTIZAÇÃO NA VIVÊNCIA DA
ESCOLA CIDADÃ.


Ana Lúcia Souza de Freitas[1]

Introdução
O texto reflete acerca da potencialidade transformadora do processo de constituição da Escola Cidadã na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre - Projeto Constituinte Escolar -destacando a contribuição de Paulo Freire como um dos pilares para a problematização da prática docente, bem como para sua reinvenção, na perspectiva da educação popular. A Escola Cidadã, ao estruturar-se a partir da organização curricular por ciclos de formação e da organização do ensino por complexo temático, enquanto aspectos complementares, é expressão do compromisso docente com uma escola pública de qualidade social[2]. Considerando, tal como Freire (1991), que mudar é difícil, mas é possível e urgente (p.8), o processo de reestruturação curricular fundou-se na indignação frente à realidade excludente e na esperança de sua transformação, a ser potencializada no trabalho escolar socialmente comprometido. A vivência desse processo se faz relevante porque a participação está mobilizando saberes e fazeres que questionam a dimensão exclusivamente técnica da atividade docente, como é possível perceber no depoimento de uma das coordenadoras:

(...) a construção deste processo a partir da Constituinte Escolar me marcou muito na trajetória profissional, todo esse processo de construção dos princípios da Escola Cidadã, marcou também porque quando a gente lê sobre isso, sobre como foi o processo da Constituinte Escolar, como se deu, o que aconteceu, eu me vejo como coordenadora do processo, eu acho legal porque eu fiz parte, isso me traz muita satisfação e eu acredito que todas as pessoas que participam desse processo ao lerem se sentem mais sujeitos ainda dessa construção.

Trata-se de um movimento cuja complexidade vem desenvolvendo as dimensões política, epistemológica e estética da prática docente, na perspectiva da construção do inédito-viável[3], ou seja, do enfrentamento cotidiano para a concretização de sonhos possíveis.
A cidade de Porto Alegre, desde 1989, com a experiência educacional vivida a partir da Administração Popular, testemunha a possibilidade de reinvenção da escola na perspectiva de sua gestão democrática. Contudo, a gestão democrática da escola não tem um fim em si mesma; é parte integrante do processo de democratização da cidade. Através do Orçamento Participativo, a gestão da cidade implementa práticas de participação direta da população no processo de planejamento, definição e fiscalização dos investimentos públicos municipais e constitui-se como referência para a aprendizagem da vivência democrática, desafiando a complementaridade das relações entre escola e comunidade no processo de definição dos rumos da cidade. Através do OP, desenvolve-se uma cultura de que a participação da comunidade na escola, em suas instâncias de discussão e decisão, é tão fundamental quanto a participação da escola nas instâncias de organização da comunidade, em sua relação com a cidade. É no sentido do desenvolvimento desta cultura de participação na relação da escola com a cidade que destaca-se o Projeto Constituinte Escolar 213 como um caminho para a reinvenção da escola, o qual, constituído na RME de Porto Alegre, passou a ser referência desta possibilidade para muitos outros municípios.

Nas palavras de Gentili (2000), a Escola Cidadã é referência nacional e internacional na construção de um sistema escolar onde o direito ao conhecimento não é um privilégio de poucos (p.17).

A Escola Cidadã, criada a partir do Projeto Constituinte Escolar é, pois, um inédito viável que vem sendo constituindo coletivamente, num exercício de ousadia, de assunção do risco e do prazer da autoria numa perspectiva utópica que compreende a distância entre o sonho e a realidade como um espaço de luta e criação (Freitas, 2000). A práxis educativa libertadora desenvolvida nesse movimento, orienta-se em função de três desafios que integram a gestão democrática do trabalho pedagógico: (1) a eliminação de mecanismos que institucionalizam na escola a lógica social da exclusão; (2) a criação de mecanismos institucionais de inclusão capazes de garantir a aprendizagem para todos; (3) a formação permanente e crítica dos educadores, fundada na reflexão da prática, como condição para a democratização das relações e da vivência da construção de conhecimento socialmente comprometido.

Para tanto, a Escola Cidadã propõe duas grandes rupturas que dão origem à estruturação de um projeto político-pedagógico emancipatório. A primeira diz respeito à eliminação da reprovação em função do compromisso com a aprendizagem para todos, ao considerar a mútua interferência entre desenvolvimento e aprendizagem, fazendo deste um eixo organizador do ensino como um processo contínuo, segundo os ciclos de formação, a saber: infância, pré-adolescência e adolescência. A segunda ruptura, em função da qual se propõe a organização do ensino por complexo temático, é a não aceitação de práticas cristalizadas em torno de listagens de conteúdos e seus pré-requisitos, por considerar a não linearidade do processo de construção de conceitos em que se inscreve a aprendizagem humana, bem como a natureza política do processo educativo. Tais proposições sustentam a reinvenção da escola na perspectiva da educação popular e mobilizam a reinvenção da concepção e prática docentes, fazendo do processo de formação permanente do educador uma condição à democratização do processo de reestruturação curricular, tal como expressa uma das entrevistadas:

Esse processo de formação é muito importante, na verdade a proposta tira aquelas estratégias de sobrevivência que o professor fabricou durante os anos de[4] sua atuação, no sentido de que se o aluno me incomoda eu vou dizer que ele vai rodar, então eu continuo com a minha autoridade. A Escola Cidadã, ao colocar essas rupturas, retira do professor essas estratégias de sobrevivência. E só com a formação em serviço, aquela formação continuada que a gente faz é que vai dar segurança ao professor para poder sustentar esta insegurança causada pelo medo: - o que vou fazer, o conteúdo não é mais o que está no livro didático.

Planejamento e organização do ensino por complexo temático: desafios à (trans) formação permanente do educador

Planejamento a partir da realidade tem sido um desafio às práticas progressistas que compreendem a prática educativa como prática social. Contudo, muitos são os impedimentos quando esta não é uma prática coletiva, mas situa-se no âmbito de propostas individuais. A potencialidade transformadora do Complexo Temático reside, entre outros aspectos, no fato de ser uma proposta para o coletivo da escola que assume a perspectiva transformadora da função social de seu trabalho.

Complexo Temático é uma denominação criada para expressar a intencionalidade do processo educativo que toma como referência as contribuições de Pistrak (1981) acerca da organização do ensino segundo o sistema dos complexos, bem como de Paulo Freire (1987) acerca do tema gerador, concebendo uma forma de organização do ensino que:
propõe uma captação da totalidade das dimensões significativas de determinados fenômenos extraídos da realidade e da prática social (SMED, Caderno 9, p.21) e, desse modo é importante que se diga que não se encontra nos indivíduos isolados da realidade, tampouco na realidade separadas dos indivíduos e de sua práxis. O Complexo Temático só pode ser entendido na relação “indivíduo-realidade contextual” (idem ibdem).

Considerando a prática social como fonte de conhecimento, a proposta de organização do ensino por Complexo Temático traz implícito o desafio de assumirmos o conhecimento do contexto como ponto de partida para a prática pedagógica. Para tanto, propõe a realização da pesquisa sócio-antropológica, tendo em vista a organização do ensino na perspectiva de um movimento que

caracteriza-se por fazer-se produção coletiva, respeitando as especificidades locais e regionais, por ser significativo para toda uma comunidade, por apontar situações-problemas para seus atores, por propor-se gerador de ação, por ajudar o aluno a compreender a realidade atual, por
respeitar os sujeitos que na escola e na sociedade interagem e por ser representativo de uma dada leitura do real (Gorodicht e Souza, 1999, p. 8182).


Nesse sentido, não é uma proposta que se fecha em si mesma: apresenta possibilidades de flexibilização frente às realidades de cada comunidade; proporciona acréscimos a seu fazer (Idem ibdem, p.82). Contudo, é possível destacar alguns movimentos importantes no processo de elaboração e vivência do Complexo Temático:
1. conhecimento do contexto através de uma pesquisa participante realizada pelo
coletivo da escola na comunidade;
2. leitura e problematização da pesquisa feita pelo coletivo; seleção de falas significativas e representativas dos anseios, interesses, concepções e cultura da sociedade;
3. definição do complexo no coletivo dos ciclos; determinação de um fenômeno que organize as informações e ângulos mais significativos da realidade investigada;

4. elaboração dos princípios das áreas do conhecimento;
5. seleção coletiva de um campo conceitual; ampliação do campo conceitual nas
áreas;
6. criação de uma disposição gráfica representativa do complexo;
7. elaboração de planos de trabalho por áreas do conhecimento, por ciclos, por anos-ciclos;
8. socialização dos planejamentos no coletivo; composição de estratégias interdisciplinares; aproximação dos planejamentos entre e intra-ciclos;
9. avaliação e replanejamento periódico através de reuniões sistemáticas nos ciclos, nos anos-ciclos, nas áreas;
10. problematização do Complexo Temático vivenciado, buscando apontar o foco do complexo temático seguinte. (Idem ibdem, p.82):

Tal proposição tem o intuito de orientar a construção dos movimentos de ir e vir entre a leitura da realidade e a construção do planejamento coletivo, bem como de seus desdobramentos em ações específicas, sem perder de vista o fenômeno a ser estudado. Essa responsabilidade se amplia a partir da compreensão de que a pesquisa sócio-antropológica como ponto de partida da organização do ensino por Complexo Temático, ao estabelecer uma estreita relação entre o movimento social e o aprendizado escolar, de modo ineditamente-viável, propõe e organiza a vivência do que Souza Santos (1989) denominou de dupla ruptura epistemológica. Trata-se de uma orientação para uma prática docente que ponha em diálogo o senso comum e o conhecimento científico a serviço da criação de uma configuração de conhecimentos que, sendo prática, não deixe de ser esclarecida e, sendo sábia, não deixe de estar democraticamente distribuída (p.42).

No exercício do diálogo permanente com a realidade, proporcionado pela vivência da organização do ensino por Complexo Temático, a pesquisa sócio-antropológica faz-se relevante como um desafio ao desenvolvimento da autoconsciência acerca da natureza política e investigativa do trabalho pedagógico, representando portanto uma possibilidade de reinvenção da prática docente, em função da própria identidade pessoal/profissional problematizada neste processo. Essa perspectiva de trabalho, ao problematizar o saber fazer docente na perspectiva da construção de um conhecimento socialmente comprometido, mobilizando o educador à criação do inédito-viável no âmbito de sua atuação pedagógica, enquanto desdobramento de seu compromisso social mais amplo.

É neste contexto, tomando como referência a teoria pedagógica da educação libertadora, que está sendo gestada uma Pedagogia da Conscientização, movimento em que a função do educador está sendo problematizada a partir da compreensão de uma nova concepção de ciência, em que não se dicotomizam razão e emoção, visto que ensinar e aprender, compreendidos enquanto dimensões do processo de conhecer, mobilizam a inteireza de ser educador, como diz Paulo Freire. A Escola Cidadã está nos desafiando a conviver com um novo paradigma, a lidar com o inusitado e a acreditar que é possível mudar a escola e que essa mudança não se faz de fora para dentro, mas começa por nós mesmos, como sujeitos autores e atores do permanente processo de construção e reconstrução da Escola Cidadã. É no sentido de potencializar esse processo de (trans)formação permanente da prática pedagógica que se situa a importância de ampliarmos o entendimento do processo de conscientização, a partir de Paulo Freire, tendo em vista o desenvolvimento da concepção e prática de uma Pedagogia da Conscientização.

Pedagogia da conscientização: um legado de Paulo Freire à formação de professores. A vivência dos avanços e desafios do processo de reinvenção da escola, na perspectiva da constituição da Escola Cidadã, permite tecer algumas considerações acerca da gestão democrática como princípio educativo que produz e é produzida pela conscientização, sendo esta uma perspectiva de globalidade a orientar as propostas de formação comprometidas com essa transformação. A conscientização é aqui compreendida como processo de desenvolvimento da consciência crítica, a qual, para se configurar em prática transformada e transformadora, exige o exercício da criticidade aliada à curiosidade e à criatividade, sendo esta uma condição necessária à criação do inédito-viável frente às situações-limite que cotidianamente se apresentam ao educador.

Sobretudo, há que se compreender a conscientização como processo de transformação da consciência-mundo que situa-se no campo das possibilidades e não da garantia de sua realização; eis porque se faz relevante a compreensão da Pedagogia da Conscientização inscrita na obra de Paulo Freire. Enquanto princípio metodológico, a conscientização precisa considerar, simultaneamente, as perspectivas de totalidade e complexidade que constituem a globalidade do processo de reinvenção da prática docente, visto que essa transformação não ocorre magicamente nem dissociada do processo de transformação da identidade profissional do educador. Considerando a complexidade deste processo, destacam-se três relações de circularidade complementares, cuja compreensão fundamenta a constituição de propostas de formação que o potencializem.

No plano da adesão, a gestão democrática produz e é produzida pela conscientização, compreendidas como processos complementares, geradores de esperança e de mobilização ao compromisso com o trabalho coletivo. No plano da ação, a identidade do educador progressista produz e é produzida pela elevação da consciência da práxis educativa libertadora, sendo este um desafio à vivência da curiosidade epistemológica acerca da própria prática, em (trans)formação permanente. No plano da autoconsciência,
diversidade das interações sociais, em diferentes níveis de reflexão vivenciados pelo educador, produz e é produzida pela criação do inédito-viável, sendo este um desafio à autoria de pensamento e autonomia da ação do educador. Adesão, ação e autoconsciência são, segundo Nóvoa (1997), os movimentos que integram o processo identitário do professor como um lugar de lutas e de conflitos (...) de construção de maneiras de ser e estar na profissão (p.34). Esse é um movimento que se vislumbra na vivência do Complexo Temático, conforme a visão de um dos entrevistados.

Elas (as pessoas) vão passar por uma crise, elas têm uma dificuldade de entender que têm outras maneiras de se ver a realidade, outras maneiras de fazer conhecimento e que não é só aquele conhecimento previamente estabelecido que nós aprendemos, ou que foi passado para nós na universidade que deve ser passado na escola; existe um conhecimento que está dado na comunidade, que deve ser respeitado e intencionado, e muitas vezes ele questiona o próprio conhecimento positivista estabelecido.

Contudo, esse é um movimento desejável, conforme a visão de outra entrevistada ao afirmar a necessidade de que as pessoas se desacomodem, considerando que, para isso que a melhor forma de se tirar o tapete, é a gente discutindo, mesmo que as pessoas pareçam irredutíveis por algumas coisas, mas alguma coisa muda nas pessoas, o simples fato de ter que se expor, já faz com que as pessoas comecem a andar. Nesse sentido, cabe destacar a potencialidade transformadora de um processo que assume a presença da contradição, compreendendo-a como desafio à qualidade democrática da prática pedagógica, desenvolvendo a discussão como estratégia de reflexão coletiva que desafia a qualidade da argumentação na disputa de posicionamentos e mobiliza ao comprometimento com a função social da prática educativa.

Segundo o Secretário Municipal de Educação, José Clóvis de Azevedo[5], as contradições são uma coisa normal dentro do processo social e é preciso que se tenha esse entendimento, não para se subordinar a ele, mas para que se desenvolvam ações propositivas no sentido de alterar a correlação de forças que se estabelecem. Considera que:
temos muitos avanços, mas temos também dificuldades e afirma que a partir do trabalho de formação desenvolvido, existem escolas, grupos, pessoas, que querem mudar mesmo, que acreditam na proposta, que estão investindo e que são os responsáveis pelos avanços, mas também existem escolas e professores que resistem ao projeto, que são contra por várias razões. Analisa-as a partir de três segmentos de resistência, que se orientam por lógicas próprias, conforme argumenta:

(...) alguns são contra por ceticismo, por não acreditar mais em nada, nem num projeto mais acabado, nem numa possibilidade de transformação, que já se flexionaram frente a um cotidiano voltado para si mesmo, um trabalho voltado para si mesmo e sem nenhuma necessidade ou crença, uma possibilidade de ação coletiva ... são céticos. Depois temos os conservadores que por convicção não querem nenhuma transformação, porque apostam numa sociedade tal como ela está hoje, naturalizando a exclusão, o autoritarismo e todos os problemas sociais de uma sociedade como a nossa. Depois tem o outro segmento que resiste ou até se enquadra no processo de mudança mas que ão sabe lidar as dificuldades, não sabem como fazer as mudanças e acabam sendo inibidos por isso.

É possível perceber, na prática da gestão democrática do trabalho pedagógico, a constituição de um senso comum libertador que assume a discussão como estratégia de reflexão coletiva e desafia a qualidade da argumentação na disputa de posicionamentos, fazendo do estudo uma decorrência natural da luta pela constituição de sonhos possíveis. É o que se evidencia, explicitamente, em importantes trechos do depoimento de uma das assessoras:
A gente percebe também aqueles professores que tem outra concepção, que acreditam ainda que a educação por série é melhor, que trabalhar só a sua disciplina curricular era melhor, era mais fácil, era eficaz, estão procurando aprofundar teoricamente para vir para as discussões com argumentos mais embasados. Estão percebendo que vão ter que trazer argumentação teórica para debater, porque na construção coletiva o que vem acontecendo é que o pessoal tem buscado um referencial teórico, tem estudado muito, as escolas estão em um movimento bem legal de estudo e aprofundamento para conseguir visualizar esse jeito novo de conseguir fazer o trabalho da escola. E, digamos, consegue “dar o tom” quem consegue argumentar mais.

Enfatiza também a forma como está sendo possível construir a transformação da prática profissional do/a professor/a a partir do desenvolvimento de uma consciência democrática, da qual decorrem certas exigências ao trabalho pedagógico:
(...) quanto mais um grupo se envolve profundamente num trabalho pedagógico diferenciado, mais vai se contagiando com os resultados que vai tendo (...) e isso está sendo um elemento motivador dos educadores mais resistentes no sentido de também se desafiaram a fazer o novo (...) por isso, quem é resistência está perdendo o espaço; o discurso hegemônico já não é mais o da escola tradicional, ainda que se verifique algumas práticas educativas que ainda são tradicionais, mas cada vez que o educador exercita o jeito novo de fazer o seu trabalho, mais coletivo, ouvindo mais o seu aluno, levando em conta o que os pais estão trazendo, potencializando para que o aluno também seja um pesquisador, também seja sujeito desse processo, eles vão se encorajando a cada vez utilizarem menos práticas pedagógicas estanques e tradicionais.

Igualmente destaca o quanto a transformação da prática está implicando a inteireza dos sujeitos, desafiando a consolidação de uma sensibilidade emancipatória, ao constatar que:
(...) vai acontecendo um apaixonamento pelo processo democrático. Temos a fala de uma professora dizendo numa reunião para nós, que quem passa por esse processo e aprende a olhar o conflito desse outro jeito, e a dialogar em cima dos conflitos não consegue a voltar a ter o mesmo olhar fragmentado sobre escola, sobre alunos, sobre a comunidade, não consegue mais voltar a ser a mesma pessoa. E eu acho que é isso, marca tão profundamente a vida de cada um , que por um lado tu começa a perceber melhor a subjetividade de cada um, tu dialoga não só com as palavras, mas com o jeito como  a pessoa olha, tu passa a perceber melhor, fazer tantas outras leituras do que está rolando em cada escola, em cada comunidade.

Acho que é super rico, de fato, quem entra neste processo de buscar viver a radicalidade democrática, não volta mais a ser o mesmo. Eu me sinto assim desafiada nesse trabalho, aprendendo muito neste processo de escola. É uma marca que fica.

Enfim, o diálogo com a realidade testemunha a qualidade da gestão democrática do trabalho pedagógico desenvolvido a partir da política educacional da Administração Popular em Porto Alegre, trazendo importantes depoimentos acerca de um conhecimento libertador que está problematizando a concepção e a prática docente a partir de uma proposta de formação que, politicamente comprometida, orienta-se por um dos saberes que Freire (1993) considerou fundamental ao enfrentamento das adversidades na luta pela construção dos sonhos possíveis: a sabedoria com que se dê à experiência de viver a tensão entre a paciência e a impaciência (p.61). A co-responsabilidade da consolidação da proposta da Escola Cidadã está se construindo a partir do trabalho coletivo que se renova na (trans)formação permanente dos desafios assumidos em função da certeza da incompletude desse processo, em função da qual vamos coletivamente desenvolvendo a autoconsciência acerca de seus limites, visto que, parafraseando Paulo Freire, ninguém conscientiza ninguém; ninguém se conscientiza sozinho; os homens e as mulheres se conscientizam em comunhão. É o que vivenciamos a partir do Projeto Constituinte Escolar em Porto Alegre.

Referências Bibliográficas:
FREIRE, Ana Maria Araújo. Notas. In: Freire, Paulo. Pedagogia da Esperança: Um reencontro com a Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 22ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
______. A Educação na Cidade. São Paulo: Cortez, 1991.
______. Professora, sim; tia, não.: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo, Olho D’Agua,
1993.
FREITAS, Ana Lúcia Souza de. A conscientização como princípio metodológico da
formação de professores - registro da reflexão sobre uma experiência ineditamente-viável na
política educacional da Administração Popular em Porto Alegre – dissertação de mestrado – PUCRS, julho, 1999.
________. Sonhar coletivamente: uma atitude de formação produto-produtora do inéditoviável. In: Gorodicht, Clarice (org.). Ler e escrever o mundo: compromisso da Escola Cidadã. Porto Alegre: SMED/PMPA, p.11-14, 2000.
GENTILI, Pablo. A Escola Cidadã além do desencanto. Prólogo In: Azevedo, José Clóvis de. Escola Cidadã: desafios, diálogos e travessias. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
GORODICHT, Clarice; SOUZA, Maria do Carmo de. Complexo Temático. In: Silva, Luiz Heron. Escola Cidadã: teoria e prática. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
NÓVOA, António. Diz-me como ensinas, dir-te-ei quem és e vice-versa. In: FAZENDA, Ivani (org.). As Pesquisas em Educação e as Transformações do Conhecimento. São Paulo: Papirus, 1997 (Coleção Práxis), p.29-41.
PISTRAK. Fundamentos da escola do trabalho. Tradução de Daniel Aarão Reis Filho.
São Paulo: Brasiliense, 1981.
SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução a uma Ciência Pós-Moderna. Rio de
Janeiro, Graal, 1989.
SMED. Ciclos de Formação - Proposta Político-Pedagógica da Escola Cidadã. Caderno
Pedagógico nº9. Porto Alegre: SMED, dez. 1996.


[1] Professora pesquisadora do Centro Universitário La Salle/Canoas/Pelotas.
[2] Sobre a estrutura curricular organizada em ciclos de formação e a organização do ensino por complexo temático, bem como sobre o Projeto Constituinte Escolar, ver: SMED. Ensino por Ciclos: Alternativa para o sucesso escolar. In. Revista Paixão de Aprender nº 9. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Educação, dez. 1995; e/ou SMED. Ciclos de Formação - Proposta Político-Pedagógica da Escola Cidadã. Caderno Pedagógico nº9. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Educação, dez. 1996; e/ou SILVA, Luiz Heron da. (org.). Escola Cidadã: Teoria e Prática. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
[3] A esse respeito, ver: FREIRE, Ana Maria Araújo. Notas. In: Freire, Paulo. Pedagogia da Esperança: Um Reencontro com a Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 205-245.
[4] Diz respeito ao período da Segunda e terceira gestão da AP em Porto Alegre: 1993 a 2000.
[5] José Clóvis de Azevedo foi secretário municipal de educação no período de 1997 a 2000 e secretário adjunto no período de 1993 a 1996.


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